A chamada Nova República engatinhava. Sarney assumira no lugar de Tancredo Neves e o País respirava os primeiros ares de liberdade após 21 anos de regime militar. Quatro meses depois da posse, o novo presidente ia ao Uruguai (também recém-saído de um período ditatorial) em sua primeira viagem ao exterior.
Na pauta, as necessidades da sempre falada integração latino-americana e fortalecimento econômico para os novos tempos. “Nossa democracia não é um fim de si mesma nem uma conquista definitiva. Ela é um instrumento das aspirações dos nossos povos, para reconciliar o Estado e a sociedade civil”, discursou Sarney.
Cumpridos os protocolos e cerimônias de praxe, a viagem tinha tudo para terminar num sucesso diplomático. Mas um encontro macabro nas solenidades e recepções acabou se transformando numa das primeiras crises do novo governo. Integrante da comitiva presidencial, a deputada Bete Mendes, conhecida atriz e militante política nos anos de chumbo, se deparou com a cara do horror nas compromissos oficiais: o coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, que a torturara nos porões do Doi-Codi, era adido militar na embaixada brasileira em Montevidéu. Ustra também reconheceu a antiga vítima e, junto com a mulher, se aproximava da deputada, procurando mostrar cordialidade e tentando justificar o passado.
Bete Mendes engoliu a seco e, remoendo o sofrimento causado pelas lembranças, decidiu manter as aparências e a tranquilidade exigida pelo cerimonial. Mas tão logo retornou ao Brasil escreveu uma carta ao presidente Sarney denunciando o ex-torturador:
“Não posso calar-me ante a constatação de uma realidade que reabriu em mim profunda e dolorosa ferida... Digo-o, presidente, com conhecimento de causa: fui torturada por ele. Imagine, pois, vossa excelência o quanto foi difícil para manter a aparência tranquila e cordial exigida pelo cerimonial: Pior que o fato de reconhecer meu antigo torturador, foi ter de suportá-lo seguidamente a justificar a violência cometida contra pessoas indefesas e de forma desumana e ilegal como sendo para cumprir ordens e levado pelas circunstâncias de um momento”.
Antecipando-se ao contra-argumento da Lei da Anistia, a carta continuava:
"Sei que muitas vozes se levantarão na lembrança da anistia. Lembro, porém, que a anistia não tornou desnecessária a saneadora conjunção de esforços de toda a Nação com o objetivo de instalar uma nova ordem política no País. O arbítrio cedeu lugar ao diálogo democrático. A Nova República, sonho de ontem, é a realidade palpável de hoje. Mas ela não se consolidará se no atual governo, aqui ou alhures, elementos como o coronel Brilhante Ustra estiverem infiltrados em quaisquer cargos ou funções.
Por isso, denuncio-o aqui. E peço, como vítima, como cidadã e como deputada federal, providências imediatas que culminem com o afastamento desse militar das funções que desempenha no vizinho país. Tenho certeza que uma determinação sua nesse sentido significará, antes de tudo, uma demonstração de respeito ao sofrimento de milhares de brasileiros e uruguaios que acabam de despertar de uma longa noite de arbítrio, na qual a tortura e os torturadores fizeram parte de uma grotesca, triste e dolorosa realidade."
A publicação da carta da deputada, então sem partido após sair do PT por contrariar a diretriz de abstenção e votar em Tancredo no Colégio Eleitoral, provocou o debate sobre a Lei da Anistia e pressionou Sarney, que anunciou o afastamento do militar da função em Montevidéu. Mas os militares resistiram, o Exército anunciou que Ustra permaneceria, e o presidente preferiu se fazer de morto. Como Ustra já tinha substituto escolhido e data para sair antes da denúncia, Sarney optou por deixar tudo como estava. E anunciou que não iria admitir uma “caça às bruxas”, pois a anistia foi para ambos os lados. Os militares, por sua vez, saíram em apoio, com Ustra ganhando elogios de várias instâncias das Forças Armadas e do então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves.
Reafirmando a intenção de não remexer o assunto, na reunião do Conselho Político, Sarney declarou que as denúncias de torturas e a divulgação de lista de subversivos eram uma tentativa de estímulo ao revanchismo e deviam “ser sepultadas definitivamente porque não interessam ao país.”
Dez dias depois da denúncia, Bete Mendes (que nos dias de hoje pode ser vista atuando como a personagem Florzinha na novela Gabriela) - anunciava que dava o assunto por encerrado após ler numa sessão da Câmara dos Deputados a carta que enviou ao ministro Leônidas reafirmando as denúncias contra Ustra e rebatendo nota do Exército que a acusava de querer desestabilizar e ofender as Forças Armadas.
"Fui seqüestrada. presa e torturada nas dependências do DOI-Codi do II Exército, onde o major Brilhante Ustra (dr. Tibiriçá) comandava sessões de choque elétrico, pau-de-arara, 'afogamento', além do tradicional "amaciamento” na base dos 'simples' tapas, alternado com tortura psicológica. Tive sorte, reconheço, senhor ministro: depois de tudo, fui julgada e considerada inocente em todas as instâncias da Justiça Militar, que, por isso, me absolveu; e aqueles inocentes, como eu, cujos corpos eu vi, e que estão nas listas de desaparecidos?”
Bete continuou a carta afirmando que a anistia deveria alcançar os dois lados, mas não podia calar-se “ante uma lamentável premiação, resultante do tratamento como herói, pelo governo anterior, a um torturador de inocentes”.
Reprodução: Acervo Estadão
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